Já era meia-noite e meu pé balançava inquieto, como se estivesse soando as doze badaladas antes de eu virar abóbora. Eu estava num bar com alguns amigos, relutante quanto à oferta de ir a uma boate na Lapa.
“Mas por que não?”, alguém perguntou.
“Porque é uma BOATE na LAPA”, respondi. Tem coisas na vida que você sabe que não vão dar certo. Como mergulhar de cabeça numa cachoeira ou correr a cavalo perto de uma quadra de vôlei. E eu já fiz todas essas. Inclusive a Lapa, que acredito ter sido a pior.
“Ah, deixa de ser velha”, disse a Roberta, uma amiga que eu acharia ótima, não fosse pela mania irritante de dar bom dia para as pessoas mesmo quando já é noite. “Vai que você conhece alguém”, ela completou.
Vai que, né? Esse sempre foi meu lema. Vai que eu conheço alguém assim por acaso e acaba dando certo? Pena que até a presente data, nunca foi que.
“Não dá, eu tô usando minhas sapatilhas de pano”, argumentei, enquanto todos me olhavam impassíveis, esperando o punchline de uma piada que não existia. “Sério, gente, minhas sapatilhas de pano”, repeti, mostrando a eles o objeto em questão.
Não dá para ir a uma boate na Lapa com sapatilhas de pano. Aliás, não dá para ir a lugar nenhum na Lapa com sapatilhas de pano. A Lapa é um lugar que está sempre molhado, misteriosamente molhado, mesmo quando não chove. E, além disso, as pessoas são irracionais quando se aglomeram. “Elas podem pisar ou derramar bebida nas minhas sapatilhas de pano”, tentei explicar.
“Quanto você pagou por essas sapatilhas? Foi tão caro assim?”
“Isso não tem a ver com o preço...Roberta. Você não entende...elas...elas são de bolinha”, respondi. “E nada no mundo vai me fazer arriscar o bom estado delas para ir a uma boate na Lapa.”
CORTA PARA:
Eu e meus amigos entrando em uma boate na Lapa.
Puta que pariu, pensei. Quando foi mesmo que eu concordei em vir pra cá?
FLASHBACK – 15 MINUTOS ANTES:
Eu e meus amigos bebendo tequila.
“Arriba, abajo, al centro e adentro.” (3X)
VOLTA PARA:
Boate na Lapa.
Ah, é.
Fazia um certo tempo que eu não frequentava aquele tipo de ambiente inóspito. Quer dizer, um lugar lotado, obviamente acima da capacidade permitida ou mesmo humanamente tolerável. Quente como o inferno, poças de lama em vários trechos dos supostos dois ambientes que na verdade são a mesma coisa e se chamam Auschwitz. Aliás, pensando bem, são dois ambientes sim: o primeiro é o trem para Auschwitz, lugar apertado, abafado, onde as pessoas se locomovem rumo a um outro lugar, achando que as coisas vão melhorar, mas quando chegam lá, fodeu, é Auschwitz. E aí todas tentam pegar o trem de volta ao mesmo tempo, numa movimentação constante que dura a noite toda. Boate é isso, gente.
Eu queria ir embora assim que cheguei, mas fui sumariamente impedida. “Nada disso, você vai ter que se divertir”, disse Roberta.
Olha, eu até entendo “você vai ter que comer mais frutas e legumes”, “você vai ter que praticar algum tipo de atividade física” e até mesmo “vocês vão ter que me engolir”, exceto se isso for dito num contexto muito específico, aí eu já acho compulsório demais e desaprovo. Mas “você vai ter que se divertir”, eu simplesmente não entendo. Não faz sentido nenhum. Diversão é uma das poucas coisas que não tem como você fazer por obrigação. Senão vira exatamente o contrário.
Mas eu tentei. Olhei para todas aquelas pessoas suadas, esbarrando em mim e derramando bebida nas minhas sapatilhas de pano e pensei: essa gente não é insuportavelmente detestável, eu é que ainda não bebi o suficiente. Tendo concluído isso, bebi mais duas tequilas e parti feroz para a pista de dança.
Estava tocando James Brown, então resolvi dar uma chance. Aí tocou Prince, depois Michael Jackson e depois um cara vomitou nas minhas sapatilhas de pano e as coisas começaram a ficar bem ruins.
Decidi ir embora, acreditando que tudo ficaria melhor assim que eu deixasse aquela região infernal. Depois de muito tempo na fila do banheiro, para limpar as sapatilhas, tive que encarar a fila monstruosa para pagar e finalmente recuperar a minha liberdade, que me fora tomada no instante em que adentrei aquele lugar escabroso.
Só que a fila não andava. Não havia o que fazer além de esperar e sofrer. Foi aí que eu dei início aos cinco estágios do sofrimento...na fila:
1 – Negação
É claro que a fila vai andar, pensei. Deve ser algum tipo de pane no sistema. Pane rápida. Tenho certeza de que tem gente competente resolvendo isso e daqui a pouquinho essa fila vai começar a andar.
E as minhas sapatilhas de pano, refletia, enquanto as observava, tenho certeza de que essas manchas de vômito saem fácil. Aliás, de repente não é nem vômito. É só algum tipo de líquido pastoso e quente de coloração ocre que alguém derrubou em mim.
E essas pessoas aí entrando na minha frente não estão furando fila, elas só estão conversando com os amigos que resolveram ir embora mais cedo, repetia para mim mesma, enquanto via uma gorda tentando escamotear o meu lugar na fila. Ela usava um vestido metade preto metade branco, cuja fronteira se localizava precisamente no meio dos peitos, gerando uma espécie de ilusão de ótica que, somada à dobra lateral provocada pela bolsa atravessada no torso, dava a impressão de que ela tinha cinco tetas. Tenho certeza de que ela vai sair daí. Gordos têm senso de cidadania.
2 – Raiva
“Não é possível uma coisa dessas! Olha a palhaçada aí, segurança!”, reclamei, apontando para as pessoas que se infiltravam na fila.
“Ah, ele é seu amigo?”, questionei. “Caguei, minha filha! Na minha frente você não vai entrar!”, impus, educadamente. “Sou barraqueira mesmo, e aí, vai bater?”, provoquei, enquanto a interlocutora me ameaçava dizendo que era maior do que eu.
“Não, querida, você não é maior do que eu, você só é muito gorda. E eu sinceramente acho que você deveria parar de dizer isso para os outros como se fosse uma vantagem”, rebati.
“Preconceituosa, eu? De jeito nenhum. Não tenho nada contra os gordos, eu só torço pelos mais fracos. No caso, a comida”, encerrei, tentando memorizar a piada para escrever no blog depois.
“Aí, alguém segura a gorda que ela ficou nervosa.”
3 – Barganha
Já sei, já sei, resolvi. Eu chamo o segurança, peço para ele ir lá na frente pagar minha comanda e dou uns vinte reais por fora, concluí brilhantemente. Pena que eu só tinha dinheiro suficiente para o táxi e ia pagar a comanda com o cartão. Suborno aceita Visa Electron?, especulei. Se a minha mãe estivesse lá, ela diria que é exatamente por causa de situações assim que eu deveria andar sempre com dinheiro na carteira. Mas, por outro lado, se minha mãe realmente estivesse lá, estar ou não com dinheiro na carteira seria o menor dos meus problemas.
“Ei, amigo”, chamei o segurança. Um negão enorme de bigode e terno preto. Êêê, feliz dia do Zumbiii, cogitei dizer, mas conclui que aquela provavelmente não seria a melhor maneira de conquistar a simpatia dele.
Eu não tinha dinheiro nenhum, por isso fiz a coisa mais baixa que alguém poderia fazer.
“Então, sabe aquele programa de TV que passa sábado à noite?”, perguntei.
“A Fazenda?”, ele arriscou, completamente desinteressado.
"Não, não. No outro canal”, respondi, um tanto decepcionada.
“Eu não assisto muito TV."
“Ok, esquece. Vamos acabar com isso logo. Escolhe um peito”, propus. Mas ao vê-lo com a cara toda retorcida, decidi mudar a estratégia.
“Olha só, meu vestido é meio curto e eu vi pessoas da Uniban nessa fila. Acho melhor alguém me escoltar até lá fora.”
4 - Depressão
Tá, sério, minha vida é patética, pensei, enquanto via a gorda de cinco peitos beijar o namorado vesgo dela. Eu supus que fosse vesgo porque ele estava de frente para a gorda e um dos olhos - só um mesmo - virava quase noventa graus na minha direção. Mas de repente era só um jeito muito peculiar e sobre-humano de flertar.
De qualquer forma, ao menos eles tinham um ao outro. Eu não. Eu não tinha ninguém. Eu estava há uma hora naquela fila, sozinha, bêbada e com minhas sapatilhas de pano vomitadas. Naquele momento, minha vida parecia mesmo extremamente patética e por um segundo eu desejei ser aquela gorda pentatetas de vestido preto e branco beijando o cara vesgo. Mas só por um segundo. Depois eu bati três vezes num banquinho de madeira.
5 – Aceitação
Ah, o que é um vomitozinho no pé e uma hora de fila quando a gente está se divertindo, né não, minha gente? Diversão é isso. E tudo tem seu preço. No meu caso, o preço foi uma entrada, mais cinco tequilas, um par de sapatilhas de pano e a minha dignidade.
Semana que vem tem mais. Porque a gente TEM que se divertir.
NOTA MENTAL: