quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
Foi Carnaval - parte II
"I'll give you my heart"
Nunca tinha ido a um cassino. Não sou boa em jogos, não sei blefar, morro de medo de apostar alto e me dar mal. Nada no mundo iria me convencer de que eu teria alguma chance de sair de lá com mais dinheiro do que entrei. Exceto por um detalhe: não tenho a menor sorte no amor.
E, pela primeira vez na vida, ser uma fracassada afetiva poderia me render frutos. Estava animadíssima. Tinha certeza absoluta de que iriam descobrir que eu era um ser de luz, dotado de uma sorte inexplicável, capaz de vencer até a lei das probabilidades. Aliás, a única probabilidade que eu não poderia contornar era a de ser expulsa do cassino após quebrar todas as bancas.
Eu seria um fenômeno mundial, uma lenda viva. Entraria para o livro dos recordes, para os anais da História. "Natalia Klein", alguém mencionaria, anos a frente, "a pessoa mais sortuda do mundo. Morreu sozinha, nunca teve sequer um namorado, mas, meu deus, como jogava!"
E foi assim que eu adentrei aquele salão, iluminado por todo o espectro de cores que o olho humano consegue captar. Não precisei de muito tempo para perceber que eu e o cassino teríamos nosso primeiro problema como um casal. Porque ali só havia três tipos de pessoa: velhos, gordos e velhos gordos. E eu sempre achei a atração física um componente essencial em qualquer relacionamento.
De qualquer forma, tentei superar aquele pequeno contratempo e me dirigi até a mesa da roleta. Completaria vinte e cinco anos em breve, então apostei todas as minhas fichas no número 25. O crupiê girou a roleta e, em poucos segundos, eu me vi entrando em êxtase total. Era como se eu estivesse em uma outra dimensão. A sensação de ganhar é algo bem difícil de descrever, mas vou tentar.
Sabe quando você abre seu presente de Natal e descobre que recebeu exatamente o que queria? Eu não saberia dizer. Sou judia, esse exemplo não se aplica a mim. Mas quando se é criança, as emoções são sempre muito mais intensas. Ganhar no cassino é como receber os melhores presentes de Natal do universo, todos de uma vez, juntos, no mesmo embrulho. É maravilhoso.
E quando a experiência acaba, tudo o que você quer é vivê-la mais uma vez. Foi o que eu fiz.
E perdi.
Depois perdi de novo. E de novo. E de novo.
Até não sobrar mais nada.
"No se preocupe", disse o crupiê, tentando me consolar. "Va a tener suerte en el amor."
Olhei para ele com um desdém que poucas vezes fui capaz de manifestar. Tudo bem ter acreditado que eu seria capaz de ganhar em alguma coisa. Tudo bem ter me sentido feliz, mesmo que por um instante, e depois ver alguém tirar aquilo de mim, arrastar minhas fichas de cinco dólares para longe como tantos por aí já fizeram com os meus sentimentos. Tudo bem, eu poderia viver com aquilo. Mas dizer que eu teria sorte no amor, ah, não. Aí já era um acinte.
"Não, eu não vou!", rebati. Quem você pensa que é pra dizer isso? Você não sabe nada sobre a minha vida!", desabafei, enquanto o crupiê me olhava sem saber o que dizer.
"Desculpe, señorita, sólo quería ayudarle."
"Então devolve minhas fichas", tentei.
"Infelizmente, no puedo."
"No puede, claro que no puede. Então também não fuede!", esbravejei e saí.
Sem mais dinheiro para apostar, comecei a observar os demais jogadores. Foi aí que eu confirmei o que no fundo já era sabido. Eu e o cassino não fomos feitos um para o outro.
Com o dinheiro que perdi naquela noite, eu poderia ter comprado um vestido lindo. E, pelo tempo que durasse, ele seria meu e eu seria dele. E não haveria joguinhos, nem blefe.
Nós seríamos felizes juntos. Viajaríamos, conheceríamos lugares, pessoas, tiraríamos fotos. Até o dia em que não desse mais certo. Que deixasse de funcionar, provavelmente porque ambos estariam mudados.
Então eu deixaria ele ir, sofrendo um pouco, mas feliz por tudo o que tivemos. E quando eu o visse na TV, em alguma moça do Chile ou do Haiti, é claro que eu sentiria ciúmes. Normal. Mas também ficaria alegre por ver que ele seguiu em frente e achou alguém novo. Até porque, eu ainda teria muitos vestidos pelo caminho.
Quanto ao cassino, ele nunca vai mudar. Será sempre aquele lugar para quem gosta da adrenalina, da aposta, da incerteza constante. Nada contra. Eu só não sou esse tipo de garota.
I LOVE YOU for sentimental reasons - Nat King Cole
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
Foi Carnaval - uma trilogia em duas partes e uma rapidinha
Parte I - Matou a família e foi ao Uruguai
Os meus parentes, ao contrário dos parentes dos outros, que só sabem falar da vida alheia, apreciam muito a variação de assuntos. E eles variam entre comida, bebida e escatologia, numa intensidade que eu diria que flui de acordo com o ciclo digestivo de cada um deles.
Passar tempo com a minha família é como viver numa espécie de twitter do intestino grosso, frequentemente atualizado. E ninguém, ninguém precisa ou deve receber esse tipo de informação.
Mas a partir do momento em que eu aceitei viajar com eles, é como se eu tivesse feito o login na rede social mais fisiológica do universo, em que só se fala dos instintos mais primitivos - como devia acontecer na família do Roberto Jefferson.
De qualquer forma, lá estava eu, na fila do check-in, junto com todos eles. A cena era típica. Meu avô queria sair para fumar, enquanto minha mãe e minha tia insistiam para ele despachar a mala que estava pesada demais para ser carregada na mão e vazia demais para quem pretendia passar uma semana fora.
"Como assim não trouxe casaco, papai? E se fizer frio? Vai fazer frio. Você vai morrer de frio."
Enquanto isso, meu tio mantinha aquele olhar distante de quem planejava comprar bebida logo.
"A gente tem que comprar bebida logo", alertou, para a surpresa de - deixa eu ver - ninguém.
E meu primo fazia uma careta que só podia indicar que ele estava morrendo de fome.
"Eu estou morrendo de fome", verbalizou.
Quando terminamos de fazer o check-in, parte da familia foi comprar comida, parte foi comprar bebida, parte saiu para fumar e parte foi ao banheiro. Eu apenas me lembrei de que não havia colocado na mala um Gillette Sensor For Women de emergência, considerando que o destino era um lugar cheio de praias.
Então fui até à farmácia e comprei duas lâminas descartáveis, daquelas rosinhas, mas não das mais caras. Levei daquelas intermediárias, que também não eram das mais vagabundas. Fiz isso sem me dar conta do problema que eu teria logo a seguir, na hora de passar pelo detector de metais.
"A senhora pode abrir a bolsa?", pediu um dos fiscais.
Estranhei a solicitação, já que eu sempre havia passado ilesa por aquele setor.
"Claro", respondi, abrindo o zíper. "Algum problema?"
"É proibido embarcar com objetos cortantes, senhora", alertou a outra fiscal.
"Mas eu não planejo fazer isso, nada que tá aí corta. Exceto o Dramin, que corta meu enjôo durante a turbulência", e ri sozinha, tentando ser simpática.
Mas eles continuaram sérios, me encarando entediados.
"O que é isso, senhora?", perguntou o fiscal, tirando as lâminas da minha bolsa, que ainda estavam lacradas na embalagem de plástico.
"Gilette Sensor For Women", respondi prontamente.
"Meio vagabundo esse, né?", comentou a fiscal mulher.
"Não, esse é do intermediário", tratei de corrigi-la.
"Tem certeza? Porque parece muito com aquele mais barato", ela insistiu.
"Mas não é. Se você olhar a etiqueta, vai ver que o preço é bem intermediário."
"Bom, de qualquer forma, a senhora não vai poder embarcar com objetos cortantes. É perigoso."
"Perigoso? O que você acha que eu vou fazer? Sair pelo avião raspando as pernas das pessoas?"
"Com essa lâmina vagabunda, eu duvido muito."
"É da intermediária, ok?", rebati, me desfazendo delas.
E foi só entrar na sala de embarque, que o intestwitter da minha família recomeçou.
"Devia ter ido ao banheiro mais uma vez, será que dá tempo?"
"Ainda tô com fome, vai ter serviço de bordo?"
"Seis whiskies e oito vodkas são o suficiente?"
"Bom era o tempo em que se podia fumar no avião. Hoje em dia é uma frescura."
"Você vai morrer de frio, papai."
Então eu entendi o que os fiscais queriam dizer. Vagabundas ou não, aquelas lâminas eram realmente muito perigosas.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Cada um tem o desktop que merece
Estava sozinha em casa e não conseguia me mexer direito. Isso me deu tempo para pensar em uma série de coisas que eu compartilharia com um terapeuta, se ao menos eu tivesse um. Até me indicaram um cara que dizem valer cada centavo dos cento e cinquenta reais que ele cobra por sessão. Mas a loja de sapatos estava liquidando, então resolvi adiar meus planos psicanalíticos para o mês que vem.
Imóvel no chão do meu quarto, lembrei-me do dia em que estava deitada na cama de alguém que disse que precisava organizar a vida dele como quem organiza o desktop de um computador. Na hora eu não contei nada. Devo ter dado um sorriso cínico e dito algo como "boa metáfora". Mal sabia alguém que em 20 de junho de 2009 eu tinha começado este texto, cujo título mantive inalterado.
Minha vida está uma zona, eu dizia, logo no primeiro parágrafo. Ok, mentira. Deixa eu reformular. Minha vida é uma zona. Uma bagunça que eu tento arrumar há anos e nunca acho tempo. E quando o tempo aparece, falta a vontade.
Mas agora veio o tempo e a vontade, junto com uma estranha curiosidade de baixar as músicas da Lady Gaga. Coloquei uma delas para tocar e comecei a arrumar meu quarto. Posso ainda não ser capaz de organizar meu tempo e controlar minhas finanças, mas, por deus, eu consigo arrumar umas gavetas. E, quem sabe, umas prateleiras, uma escrivaninha, um armário.
Foi quando, no auge do meu entusiasmo, eu me apoiei em um dos cabides para alcançar a porta de cima do guarda-roupas e caí no chão. Feio.
Achei que a situação não poderia piorar, quando percebi que o iTunes estava no modo repeat. Ficar imóvel caída no chão pode parecer assustador, mas ficar imóvel caída no chão ouvindo Lady Gaga é muito, muito pior. Seria um jeito extremamente ridículo e constrangedor de morrer. Fiquei imaginando minha mãe contando a história para as pessoas:"E então eu entrei no quarto dela e tocava Paparazzi no último volume." Seria mais digno se eu estivesse ouvindo Madonna ou alguma outra cantora da terceira idade.
Então eu lamentei por não ter tido mais tempo. Se me dessem um último pedido, seria o de finalmente limpar meu desktop. Porque ele é a síntese perfeita do caos que rege minha vidinha medíocre. Exatamente como alguém me disse uma vez, enquanto eu deitava em sua cama, tão imóvel quanto agora, estendida no chão.
Pouco a pouco, fui recuperando o controle dos movimentos, até conseguir me levantar de vez. Sem pensar muito, fui direto até o computador fazer o que eu já devia ter feito desde junho de 2009. Organizar minhas pastas, cheias de downloads incompletos e frustrações acumuladas. Já era tempo de colocar cada coisa em seu lugar, escolher um papel de parede novo e reiniciar o sistema.
Dizem que quando você não faz isso, a Lady Gaga vem tem buscar.
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sábado, 6 de fevereiro de 2010
Da série: diálogos psicóticos
"Um petit gâteau, por favor", pedi.
"Mais alguma coisa, senhora?", a garçonete perguntou.
"Não, não. Só o petit gâteau mesmo."
"Ok, senhora. Quinze minutinhos, tá?", ela avisou, virando-se para ir embora. Não fosse pelo broche com o nome "Claudete", eu poderia jurar que se tratava de um traveco. Se bem que Claudete não é exatamente um nome livre de suspeitas.
"Ah, espera", eu disse, interrompendo a saída dela. "Pode ser sem sorvete?"
Então a garçonete me olhou de um jeito estranho, como se eu tivesse feito alguma pergunta absurda.
"Como assim sem sorvete?"
Desviei olhar para ganhar tempo e pensar em que tipo de resposta eu deveria dar. Tenho essa necessidade constante de agradar todo mundo, o tempo todo. Porque, obviamente, seria inconcebível viver num mundo em que alguém não fosse com a minha cara.
"A senhora não gosta de sorvete?"
"Não, é que... "
"Porque todo mundo gosta de sorvete", prosseguiu. "Seria estranho se a senhora não gostasse, só isso."
"Não, eu gosto, eu gosto", tentei consertar. "Mas é que eu gosto mais do petit gâteau e não queria comer duas coisas engordativas."
Nessa hora a Claudete me lançou um olhar de cima a baixo, seguido de um sorriso.
"Uma vezinha só não faz mal", concluiu sozinha. "A graça tá no sorvete."
"Não. A graça tá no petit gâteau. Se a graça estivesse no sorvete, a sobremesa se chamaria sorvete. E seria acompanhada de petit gâteau."
"Então eu posso mandar servir com sorvete?"
"Não! Eu não quero o sorvete!"
"Mas o preço é o mesmo sem sorvete", ameaçou.
"Não tem problema."
"Eu só tô dizendo que se a sobremesa inclui sorvete e você não vai pagar menos por tirar o sorvete, não vejo por que não pedir logo tudo."
"Porque eu não quero!", respondi, já exaltada.
"A senhora está dizendo que se eu trouxer o petit gâteau com sorvete num prato, a senhora vai comer o petit gâteau e deixar o sorvete? Não vai dar nem uma colherada?"
Fiquei muda por alguns instantes, incrédula.
"Aaahh, te peguei, hein", ela disse.
"Do que você tá falando? Não é pra colocar o sorvete no prato!"
"E é pra colocar onde?"
"Não me interessa! Pode comer, se quiser!"
"A senhora está insinuando que eu como do prato dos clientes?"
"Não! Só tô dizendo que já que você é a entusiasta do sorvete, pode ficar com o meu. Porque pelo tempo que a gente tá discutindo, eu já poderia ter comido a sobremesa duas vezes."
"Ok", ela disse, visivelmente ressentida.
"Ok?", confirmei, estranhando a súbita aceitação dela.
"Vou passar o pedido para a cozinha", respondeu, novamente virando-se para sair.
"Espera um pouco. Você não vai...", iniciei, constrangida. "Você não vai fazer nada com o meu petit gâteau, vai?"
"Como assim, senhora?"
"Eu reparei que você ficou chateada comigo. Mas isso não é motivo pra você incrementar meu prato com algum ingrediente especial."
Ela parou e cruzou os braços, esperando que eu concluísse a acusação.
"Você não vai cuspir no meu petit gâteau, vai?", perguntei de uma vez.
"Que absurdo, eu sou uma profissional", respondeu, ofendidíssima. "Mas é claro que acidentes acontecem."
"Não, não, não. Um cuspe não acontece. Um cuspe é planejado", expliquei, nervosa. "Por que você planejaria uma coisa dessas, hein, Claudete?"
"Não fui com a sua cara."
Aaahh, por que não? Foi alguma coisa que eu disse? Será que ela percebeu quando eu achei que ela parecia um traveco? Eu deveria comprar alguma coisinha como forma de me desculpar?, pensava, enquanto procurava manter a pose.
"Eu não faço as regras", ela continuou. "O petit gâteau vem acompanhado de sorvete. Todo mundo sabe. Ninguém nunca arrumou problema com isso. Mas aí chega a senhora, se achando melhor do que o resto das pessoas, querendo mudar as regras. Isso tem um preço!"
"E o preço é uma cuspidela no meu prato, é isso que você está me dizendo?"
Ela deu de ombros.
"Você quer mais dinheiro? Eu dou mais dinheiro! Eu pago pra você tirar o sorvete! Eu faço o que você quiser. Só me diz o que eu preciso fazer pra garantir que ninguém nessa cozinha troque fluidos com a minha sobremesa!"
"A senhora pode pedir o petit gâteau com sorvete", respondeu, calmamente. E sorriu, quase de maneira simpática.
Olhei em volta, com um sentimento de revolta e total impotência. Então fiz o que qualquer cidadão consciente faria naquelas circustâncias. Apenas me sentei e disse:
"Ok, pode trazer."
"Excelente escolha. A senhora não vai se arrepender", ela rebateu. E finalmente se virou para sair.
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