A começar pelo imenso volume vertical do meu cabelo, uma coisa mezzo Marge Simpson, mezzo Elvira Rainha das Trevas. O volume é tão vertical, mas tão vertical, que invade o título da revista fictícia "A Criança". E por pouco não vai ao infinito e além, ultrapassando até mesmo os limites da foto em questão. Trata-se de uma "edição especial" como diz o lettering. Contendo "beleza", "simplicidade dos traços", "estilo infantil" e, é claro, "vitória da qualidade". Meu rosto, como vocês podem ver, possui um lado obscuro. O Pink Floyd se inspirou nessa foto para compor "The Dark Side of The Moon".
Eu poderia passar o dia mencionando os detalhes dessa rica montagem, de uma Era Pré-Photoshopiana, mas vou me resumir ao que realmente importa agora: eu era estranha.
E uma pessoa com esse nível de estranheza aprende desde cedo o que é ser alvo de piadas. Se hoje eu consigo rir e fazer os outros rirem com isso, é porque um longo caminho já foi e continua sendo percorrido.
Não existe nada mais fácil do que sacanear quem já é frequentemente sacaneado. É tiro certo, todos vão achar graça. Mas aí não estamos falando de humor. O nome disso é bullying.
Anos se passaram desde que essa foto foi tirada e agora eu me vejo em um cenário muito parecido com o que eu vivi quando era só uma garota estranha. Recentemente, dei uma entrevista em que me perguntaram sobre os limites do humor. Por uma infelicidade, publicaram apenas um trecho da minha resposta, em que eu digo que "não posso mais fazer piadas com anão, negros, homossexuais".
É importante deixar claro que eu disse sim essa frase pavorosa. Mas em um contexto muito mais amplo. O que eu expliquei - ou, pelo menos, tentei explicar - é que não se pode fazer piadas envolvendo assuntos polêmicos sem correr o risco de ser tachado de preconceituoso. Mas fingir que o preconceito não existe é infinitamente pior.
Não sou a favor de fazer graça de quem já tem que lidar diariamente com a intolerância. Sou a favor de se fazer piada da intolerância em si. Em colocar na mesa os nossos podres para que a gente lembre que eles existem.
O objetivo do humor, na minha opinião, não é simplesmente fazer rir. Se fosse, contar piadas sobre negros numa convenção da KKK ou sobre judeus na Associação Viva Hitler seria um estouro de sucesso.
Programas como "Seinfeld", "Family Guy", "Modern Family", exploram muito bem essa linha tênue do dito politicamente incorreto. Em "Seinfeld", durante uma cena em uma loja de cadeira de rodas, o vendedor fala, sem pestanejar:
"Esse é nosso melhor modelo, a Cougar 9000. É a Rolls Royce das cadeiras de rodas. Isso é tipo... você quase fica feliz de ser deficiente."
Esse é o exemplo clássico de uma piada que causa uma risada desconfortável, porque vem acompanhada de uma crítica sutil. Pessoas como esse vendedor existem e falam absurdos assim o tempo todo. A graça não está em ridicularizar o deficiente. A piada reside em alfinetar um preconceito vigente, que existe e não deve ser ignorado.
Em "Modern Family", o casal gay moderninho fica indignado quando descobre que sua filha, um bebê vietnamita, é escolhido para fazer um comercial estilo "Godzilla em Tóquio". Ultrajado, um dos pais se levanta e vai buscar a menina, dando um discurso educativo sobre as diferenças geográficas entre o Japão e o Vietnã, enquanto se confunde e pega o bebê errado.
São programas bem sucedidos, que romperam a barreira do tal do politicamente correto em prol de um humor de qualidade, que consegue, de maneira muito sagaz, ser ao mesmo tempo ácido e construtivo.
É nesse humor que eu acredito. Piamente.